Dia mágico

1 de dezembro de 2009



Dia desses estava voltando para casa do trabalho. Até chegar ao metrô, passo por uma pequena livraria espiritual na Haddock Lobo. Pois nesse dia fazia aquela garoa chata, típica da paulicéia. E eu reclamando desse tempo sem graça da capital dos bandeirantes.

Bem na porta da livraria me para um homem vestido de bermudas, uma camisa de botão estampada bem surrada e uns chinelos velhos. Em plena garoa, o homem mais parecia que tinha saído da praia. E de uma praia bem suja.

Ele me abordou. Olhou para mim e pediu um prato de comida. Costumo nem falar com estranhos, ando muito sozinha por SP. Mas não se nega um prato de comida pra ninguém. Então falei que ao lado tinha uma padaria, que podíamos ir lá. Ele argumentou que lá era caro e muito arrumado, que preferia algum dinheiro. Eu, como sou desconfiada, disse que não tinha dinheiro, mas que se ele preferisse tinha um restaurante ali do lado que servia uma comida muito boa e não era tão caro (é o mesmo do feijão).

Ele topou. E a garoa fina ia cortando a gente até a entrada do bar. Eu perguntei o nome dele. José, ele respondeu. Explicou que estava ali aquela hora pois tinha ido ao hospital.

— Eu tenho HIV, disse ele. Sempre vou ao hospital. Por sorte tenho uma ajuda do governo, todo mês tenho aposentadoria, esse dinheiro que me salva. Eu tenho onde morar, sabe? Um banheiro só meu. Lá em Santa Cecília, conhece?

— Já ouvi falar, mas não conheço, não sou daqui. Respondi começando a gostar do papo. O senhor é paulista?

—Sou não. Sou de Alagoas, longe daqui.

Aquilo me tocou. Talvez porque ele cruzou meu caminho naquela livraria meio mágica ou por minha mãe ser alagoana e eu ter todo um vínculo emocional com aquela terra. Eu fiquei impressionada com o acaso.

— Eu também sou de Alagoas. Quero dizer, minha família é de lá. De que cidade o senhor é?

— Eu sou de Penedo, conhece? (fiz que sim com a cabeça) Você jura que é de Alagoas? E abriu um sorriso.

Logo depois os olhos dele se encheram de água. Emocionado ele olhou nos meus olhos.
— Sabia que para me ajudar você não podia ser daqui. Mas nunca imaginei que Deus ia colocar alguém da minha terra no meu caminho. Passei fome esses dias. Não morro de fome, sabe? Tenho o dinheiro da aposentadoria, mas é pouco. E ninguém quer falar comigo quando falo da minha doença. Tô assim tem 11 anos. Eu antes tinha um trabalho. Depois fui demitido.
— To na justiça, só esses dias é que saiu minha sentença. Com o dinheiro da indenização dá para eu voltar pra Alagoas.


— E sua família em Alagoas? Que acha de você voltar? Estão felizes?
— Ninguém mais fala comigo. Mas pelo menos vou pra minha terra. Aliás, faz tanto tempo que não converso com ninguém. Só com minha médica.

Foi minha vez de molhar os olhos.
O prato de fígado chegou. Ele sorriu e comentou que era muito cheiroso. Foi a primeira vez que também gostei do cheiro de fígado. Ele pegou a marmita e disse: obrigado. Eu apertei a mão dele e os olhos dele voltaram a se encher.

— A senhora tocou em mim? Mesmo eu tendo dito que sou doente? Obrigado por tudo, mesmo! Foi um anjo que trouxe a senhora pra me ajudar. Vai com Deus, minha filha!

Eu nem falei nada. Fiquei chocada com o depoimento dele. Voltei a garoar sem processar a experiência direito. Só depois senti o preconceito, que de tão arraigado se impressiona até mesmo com um simples aperto de mãos.

E pensar que isso não foi nos anos 80, foi dia desses, em pleno século XXI. Será mesmo que nessa São Paulo cosmopolita as pessoas evitam dar pratos de comida e apertos de mão? E evitam pessoas soropositivas?

Realmente espero que não.

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